A relação entre o evangelho de Tomé e o de João[]
Assim como o evangelho de Maria Madalena, o de Tomé está em estreita relação com o evangelho de João. Todos são considerados gnósticos. Tratam de temas que faziam parte do ensinamento gnóstico. Alguns estudiosos procuram defender o evangelho de Maria Madalena e Tomé, procurando explicações que justifiquem o não gnosticismo desses evangelhos. Nós acreditamos que o gnosticismo desses evangelhos é uma coisa positiva. Ela não faz parte da corrente gnóstica dualista e maniqueísta, que os cristãos rejeitavam. O gnosticismo dos evangelhos de Maria Madalena, Tomé e joão tem como princípio a integração do masculino e feminino em cada ser humano. Jesus ressuscitado é a luz que habita dentro de nós e que nos coloca no caminho de Deus. Somos matéria que se decomporá para voltar à origem, ao princípio de tudo.
Jesus, na perspectiva gnóstica do evangelho de Tomé, é um sábio que caminha como os discípulos. É um mestre que não fala de si mesmo, mas que ensina palavras portadoras de vida para os seus discípulos. Jesus é um vidente (ressuscitado e glorificado) que comunica palavras de vida, as quais levam o discípulo a tomar consciência de si mesmo, a conhecer-se e caminhar para a realização plena do seu ser. Jesus é Salvador. Suas palavras evitam a morte definitiva de quem as observa.
Tendo em vista essa relação estreita entre os evangelhos de Tomé e João, vamos lê-los em conjunto. Selecionamos alguns temas para o nosso estudo. Antes, porém, vejamos um quadro sinótico dos textos de Tomé que aparecem em João. Tomé os copiou de joão? Quem é mais antigo? Talvez não tenhamos a resposta exata para essas questões. Basta considerar a relação entre o pensamento das comunidades de Tomé e de João, guardado na escrita de cada texto. Que cada um tire as suas próprias conclusões.
Tomé | João | Conteúdo |
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1 | 8,51-52; 5,24 | Quem crê, ouve, guarda, interpreta a Palavra e não morrerá |
4 | 17,20-23 | Torna-se Um |
18 | 20,15 | Permanecer na ressurreição como princípio e fim de tudo |
19 | 8,58;5,24 | Ser antes de existir, antes de Abraão |
22 | Jesus e Deus são UM | |
23 | 6,70; 13,28 | Jesus escolhe os seus discípulos |
24 | 1,9 | Luz |
27 | 3,5; 6,46; 14,9 | Encontrar e entrar no Reino e ver o Pai |
28 | 4,13-15 | Ter sede da água eterna |
30 | 10,34 | Deuses |
31 | 4,44 | ninguém é profeta na sua própria terra |
33 | 10,9 | Interior e exterior |
34 | 9,39-41 | Cegueira interior |
37 | 6,19-20 | Não ter medo |
38 | 7,33-34; 8,21; 13,33; 16,16 | Dia em que Jesus será procurado e não mais será encontrado entre o povo |
40 | 15,1-2.5-6 | Permanecer em Jesus-videira para não ser arrancado |
43 | 8,25 | Quem é Jesus? |
47 | 2,10 | Vinho velho e novo |
49 | 8,42; 16,27-28 | Sair do Pai e para ele voltar |
50 | 12,36 | Somos filhos da Luz |
51 | 5,25 | Jesus veio e não foi reconhecido pelos mortos |
52 | 1,45 | Os profetas falaram de Jesus |
53 | 4,24 | Deus deve ser adorado em Espírito e Verdade |
56 | 1,10 | Conhecer o mundo e o mundo não o reconheceu |
59 | 8,21; 12,21; 16,16 | Ver Jesus |
71 | 2,19 | Destruir a casa/templo e não mais poderão ser reconstruídos |
77 | 8,12 | Jesus é a luz do mundo |
78 | 8,32 | Conhecer a verdade para se libertar |
91 | 6,30; 7,3-5.27-28; 14,8-9 | Necessidade de sinais para conhecer Jesus |
105 | 8,18-19.41-44 | Conhecer o Pai |
108 | 7,37; 6,53 | Beber da boca de Jesus |
111 | 8,51 | Quem vive do Vidente, não conhecerá o medo e nem a morte |
114 | 20,1-18 | Maria Madalena |
O quadro acima nos mostra que os evangelhos de Tomé e João ensinavam pensamentos gnósticos. Os membros dessas comunidades eram interpelados a:
- ser intérpretes (hermeneutas) da Palavra, a conhecê-la profundamente para, assim, não conhecer a morte;
- Conhecer a Palavra, Jesus, o Pai e a Verdade para se libertar da morte;
- saber que Jesus e Deus são Um. Jesus veio do Pai e para Ele há de voltar;
- acreditar que Jesus é a Luz;
- manter a sede de Deus e beber da vida que jorra de Jesus;
- reconhecer que ninguém é profeta na sua própria terra;
- reconhecer que temos uma cegueira interna que nos impede de chegar ao conhecimento da verdade;
- afastar o medo da morte;
- permanecer um Jesus para não perder a salvação;
- saber que não há necessidade de sinais visíveis para acreditar em Jesus como Verdade.
Além desses ensinamentos gnósticos, é notório o fato das comunidades dos evangelhos de João e Maria Madalena terem escolhido Maria Madalena para fechar seus escritos (Jo 20,1-18 e Tomé 114). O que isso significa? João e Maria Madalena formavam uma única comunidade? Sim e não. Maria Madalena, a mulher que soube integrar dentro de si o masculino e o feminino, que fez a experiência do Vidente (Jesus glorioso e ressuscitado), foi, por isso, escolhida para anunciar a ressurreição do Mestre. E quem conhecer e anunciar os ensinamentos de Jesus será salvo. Como vimos anteriormente, o evangelho a ser anunciado passa a ser o de Maria Madalena. Jesus vive dentro dela. Quem puder compreenda e se torne qual outra Maria Madalena, qual outro Jesus.
Tomé 1 e Jo 5,24; 8,51-52: quem compreende as palavras de Jesus não morrerá[]
Em relação à compreensão das palavras proferidas por Jesus, as comunidades de Tomé e João afirmamSeguimos a tradução proposta por Jean-Yves Leloup, O evangelho de Tomé, Vozes: Petrópolis, 2000:
Tomé 1 | Jo 5,24 | Jo 8,51-52 |
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Ele disse: Aquele que vier a ser o hermeneuta destas palavras não provará a morte | Em verdade, em verdade, vos digo: quem escuta a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não vem a julgamento, mas passou da morte à vida. | Em verdade, em verdade, vos digo: se alguém guardar a minha palavra, jamais verá a morte. Disseram-lhe os judeus: Agora sabemos que tens um demônio. Abraão morreu, os profetas também, mas tu dizes: Se alguém guardar a minha palavra jamais provará a morte. |
As comunidades de Tomé e João sabem que compreender as palavras de Jesus significa interpretá-las corretamente. Fazer-se o hermeneuta das palavras do Mestre é provar no ser a profundidade da mensagem ensinada por Jesus. É fazer-se um seguidor fiel das palavras de vida. Assim, a morte não terá lugar no dia-a-dia de uma vida mortal. E isso é já viver eternamente. É estar de bem com a vida. Ser um bem amado por mim mesmo e pelos que me rodeiam. E isso também se chama viver em sintonia com a vida. Quem compreende essas palavras é já um ressuscitado.
A comunidade joanina usa os verbos crer, escutar e guardar. Na verdade, eles dizem a mesma coisa. O bom intérprete é aquele que sabe escutar, crê na mensagem e a guarda no coração, isto é, a pratica com vigor. Para esses a morte não tem vez. Os judeus chamaram Jesus de demônio ('δαιμονιον'), pois ele semeava a discórdia e a mentira. Abraão e os profetas morreram. Como pode alguém afirmar que a morte não existe? Em nossos dias, um grupo de cientistas holandeses fez uma pesquisa com pacientes em estados terminais, que experimentaram a morte clínica de 15 segundos a 45 minutos, e voltaram a viver. As experiências feitas por eles são incríveis. Um paciente chegou a relatar que havia estado em uma rua do centro da cidade, conversado com uma pessoa acidentada e depois se lembrou que devia voltar para o hospital. Outro relatou que conversou com uma mulher no quarto ao lado. Em todos os dois casos o fato real foi comprovado: aconteceu um acidente na rua mencionada e no mesmo instante em que o paciente fora considerado clinicamente morto. O acidentado morreu. Havia uma mulher no quarto do lado que, naquele momento, estava também clinicamente morta. Esses exemplos e tantos outros levaram os cientistas a acreditarem na possibilidade de vida após a morte. Como isso acontece, a ciência não sabe explicar.
jesus, ao dizer que quem interpreta as suas palavras não provará a morte, não estaria falando da vida eterna? Sim. Ele falava da vida já e ainda não. Viver nesse mistério prolonga a vida, a eterniza. Jesus soube transformar em atos a Presença de Deus. Nós somos chamados a fazer o mesmo.
Tomé 24 e Jo 1,9-10; 9,5; 12,35-36: eu sou a luz que ilumina o mundo inteiro[]
Tomé 24 | Jo 1,9-10 | Jo 9,5 | Jo 12,35-36 |
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Disseram os discípulos: indica-nos o lugar onde estás; com efeito, devemos ir a sua procura. Ele lhes respondeu: quem tem ouvidos, ouça" Há luz no íntimo de um homem de luz e ele ilumina o mundo inteiro. Se não iluminar, tudo estará nas trevas. | Esta era a luz verdadeira, que vindo ao mundo a todos ilumina. Ela estava no mundo, e o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a reconheceu. | Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. | Por pouco tempo a luz está entre vós. Caminhais enquanto tendes luz, credes na luz, para vos tornardes filhos da luz. |
Os discípulos, ao pedirem a Jesus que indique o lugar onde ele está, demonstram que não haviam que não haviam compreendido o sentido de Jesus-Luz para os seus passos. Jesus responde: a luz que cada um tem dentro de si é a presença de Deus que ilumina quem está nas trevas. Jesus é a luz verdadeira que veio ao mundo. Pena que o mundo não o reconheceu. Para tornar-se luz como Jesus, é necessário que acreditemos na luz. Cada discípulo(a) é chamado a caminhar na luz. Essa é uma decisão pessoal. A luz está no íntimo de cada um. Quem não ilumina, produz trevas para todos que estão à sua volta. Jesus tinha consciência que ele era a luz do mundo. A sua presença era passageira. Quem viu e creu na Luz, tornou-se um filho da Luz. A comunidade entendeu que todo batizado é um filho da Luz. Por isso, ele deve viver como Jesus viveu. Sim eu quero que a luz de Deus que um dia em mim brilhou, jamais se esconda e não se apague o seu fulgor, cantam as nossas comunidades eclesiais.
O pensamento judaico uniu luz à ressurreição. É o que podemos perceber no significado do substantivo hebraico hôr, que significa luz e está relacionado com um osso que temos na base da espinha, daí chamá-lo de osso luz e redefinir hôr como osso indestrutível, em forma de amêndoa, na base da espinha, em forma do qual um novo corpo se formará na ressurreição dos mortos. Esse osso sobrevive à desintegração do coro após o sepultamento, mas pode ser danificado se houver cremação. Nos tempos rabínicos o 'osso luz' foi testado na prática pelos que duvidavam da ressurreição, e constatou-se que ele era capaz de resistir ao fogo, à água e a pancadas fortes. Não obstante, alega-se que as águas do tempo do dilúvio foram tão violentas que dissolveram o osso luz da ossada de Adão. Acredita-se que aqueles que se curvam a Deus durante a oração garantem um corpo ressuscitado, pois ao curvar a espinha estão estimulando o osso luzCf. Alan Unterman, Dicionário judaico de lendas e tradições, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992, p.158. Os judeus, por isso desenvolveram a prática de rezarem curvando e balançando o próprio corpo. Com esse gesto todo o corpo recebe luz do hôr. Os cristãos, procurando reler esse modo de pensar, ensinaram que o ressuscitado está sempre de pé, em forma ereta, a irradiar a luz que dele emana para todos quantos dele se aproximam para conhecê-lo e vivê-lo intensamente.